terça-feira, 28 de dezembro de 2010

ENTRE A JUSTIÇA E A GRAÇA

por Marcos Monteiro

A Igreja Batista da Graça na cidade de Salvador, BA, sofreu uma ação de interdição judicial e o pastor ficou temporariamente afastado de suas atividades eclesiásticas. O episódio foi divulgado pelos jornais, apenas porque o Pastor Edvar Gimenes de Oliveira, amigo pessoal, resolveu enfrentar a esquisitice do fato com uma greve de fome. O fato é esquisito por diversos motivos.


Primeiro, a ação judicial é resultado da ação de uma minoria tão minúscula, diante da maioria absoluta que apóia o pastor que o fato se constitui como uma violência interna. Todo o cidadão tem direito de recorrer à justiça, quando se sente lesado em seus direitos, mas há sentimentos e sentimentos. Nesse caso, o bom senso pode ajudar pessoas a não transformarem em legais questões pessoais, em que motivações tais como desejo de poder, vaidade pessoal, ou frustrações quaisquer, embotem a capacidade de julgamento até sobre nós mesmos. A ação partiu de um desembargador, cargo que sabemos, no sistema judiciário, administra uma dose considerável de poder e influência, o que se constitui como um desafio diante de princípios éticos e valores morais.


A relação entre sociedade civil e sociedade política sempre foi complexa, mas nós vivemos um momento singular na história, especialmente diante do fenômeno religioso. A religião é um campo de significações propenso aos exageros e desmandos éticos. No modo de ser de uma igreja batista, entretanto, há mecanismos de decisão e de controle que diminuem a possibilidade de tais excessos. Assembléias, relatórios minuciosos, transparência administrativa e financeira, distribuição de cargos e responsabilidades, transformam as igrejas batistas em associações com um pouco mais de dificuldade de acontecerem desvios. Conhecendo Edvar de muito tempo, sei que ele se sente bem à vontade nesse tipo de associação, tendo o cuidado democrático e a transparência administrativa como marcas de todas as suas gestões, quer em igrejas quer em outras instituições similares.


A greve de fome que o pastor iniciou e que já encerrou diante de fatos novos mais promissores, tem um interessante viés. Pretendeu ser um ato político para chamar a atenção sobre a possibilidade de uma ingerência indevida do estado sobre a igreja. As relações entre estado e igreja são históricas e faz parte da configuração do estado laico considerá-las instâncias separadas. Essa autonomia, obviamente, é relativa apenas diante da lei que gere todas as instituições vigentes no país. Em todos os outros casos, igreja e estado, seguem suas próprias lógicas e caminhos. Essa intervenção, portanto, pode se configurar como uma violência do poder político contra o poder religioso.


A fome é uma estratégia da vida para garantir a sua continuidade. Somos todos animais famintos. Quando usada como instrumento de luta, uma nova qualidade é acrescida à essa fome, lembrando-nos da fome de justiça mencionada no Sermão da Montanha, como palavra de Jesus. Greve de fome é recurso de quem chegou a limites, recurso dos sem recursos, poder dos desempoderados, diante de uma concentração de poder desproposital. Ausência, carência, vazio, transformados em armas de guerra, pequenas pedras na funda de Davi, diante das armas técnicas dos Golias.


Nesses momentos, o estado parece voltar a ser o Leviatã, esse animal artificial terrível que, segundo Hobbes, criamos para nos livrar de nós mesmos. Uma todo-poderosa fera criada para submeter o lobo que nós somos. A história da modernidade pode ser lida como a tentativa de todos para domesticar essa fera. O estado laico e a separação dos poderes, essa trindade profana, executivo, legislativo e judiciário, seriam duas coleiras construídas para facilitar o controle da fera. O episódio em pauta, portanto, coloca todas as nossas conquistas sob judice.


No cenário montado, a relação entre duas palavras, “justiça”, palavra profana, e “graça”, palavra teológica. A justiça é essa impossibilidade matemática: a precisão, o ponto exato, a justeza. A graça é ela mesma uma palavra graciosa, que nos leva a engraçar com pessoas e a achar graça na vida, mesmo em situações esdrúxulas. É um ultrapassar, um acrescentar algo mais a todas as situações, como uma espécie de sopro divino condescendente. Quando a justiça tenta embargar a graça, acontece um desequilíbrio. Os fariseus, que Jesus criticava, eram bons de justiça e ruins de graça. Portanto, a graça tem sempre de prevalecer diante da justiça, senão a própria vida corre o perigo de perder a graça.


Feira de Santana, 24 de dezembro de 2010.

*Marcos Monteiro é assessor de pesquisa do CEPESC. Mestre em Filosofia, faz parte do colégio pastoral da Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA. Também é coordenador do Portal da Vida e faz parte das diretorias do Centro de Ética Social Martin Luther King Jr. e da Fraternidade Teológica Latino-Americana do Brasil
CEPESC – Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão. E-mail cepesc@bol.com.br, site www.cepesc.com.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Navegando sem perder o foco, mesmo em meio a tempestades!

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Algo dentro de mim que ninguém pode tirar

"Eu lhes digo, meus amigos: Não tenham medo dos que matam o corpo e depois nada mais podem fazer. Mas eu lhes mostrarei a quem vocês devem temer: temam aquele que, depois de matar o corpo, tem poder para lançar no inferno. Sim, eu lhes digo, esse vocês devem temer.” (Lc. 12.4-5)

“Pois Deus não nos deu espírito de covardia, mas de poder, de amor e de equilíbrio.”
(II Tim. 1.7)

Há algo dentro de mim que ninguém pode tirar
Há algo dentro de mim que ninguém pode matar
Há algo dentro de mim que ninguém pode anular
Há algo dentro de mim que ninguém pode apagar
Há algo dentro de mim que ninguém pode atingir

Há algo dentro de mim que ninguém é capaz de fazer:
É destruir minha capacidade de recomeçar, de renascer.

Alguém pode ser capaz de me difamar
Alguém pode ser capaz de me magoar
Alguém pode ser capaz de me humilhar
Alguém pode ser capaz de me desempregar
Alguém pode ser capaz de me fazer adoecer
Alguém pode ser capaz de me desestruturar
Alguém pode ser capaz dos meus amigos me separar
Alguém pode ser capaz de me marginalizar
Alguém pode ser capaz de me "processar"!

Mas há algo dentro de mim que ninguém é capaz de fazer:
É destruir minha capacidade de recomeçar, de renascer.

Alguém pode pensar ter me destruído, destruindo meu corpo
Alguém pode pensar ter me destruído, calando minha voz
Alguém pode pensar ter me destruído, menosprezando meus sonhos
Alguém pode pensar ter me destruído, destruindo minha reputação
Alguém pode pensar ter me destruído, destruindo a história que escrevi

Mas há algo dentro de mim que ninguém é capaz de fazer:
É destruir minha capacidade de recomeçar, de renascer.
Isso é graça divina e ninguém pode controlar
Copyright Edvar Gimenes de Oliveira
 xxx
Morning Has Broken  



Morning Has Broken Cat Stevens
Morning has broken, like the first morning
Blackbird has spoken, like the first bird
Praise for the singing, praise for the morning
Praise for the springing fresh from the world

Sweet the rain's new fall, sunlit from heaven
Like the first dewfall, on the first grass
Praise for the sweetness of the wet garden
Sprung in completeness where his feet pass

Mine is the sunlight, mine is the morning
Born of the one light, eden saw play
Praise with elation, praise every morning
God's recreation of the new day

A manhã se rompeu
Como a primeira manhã
O melro cantou
Como o primeiro pássaro
Louvor para o canto
Louvor para a manhã
Louvor para o nascimento recente
Do mundo

Doce é a chuva do novo outono
Iluminada pelo sol vindo do céu
Como o primeiro orvalho
Sob a primeira grama
Louvor para a doçura do jardim molhado
Brotado em completude
Por onde os pés dele passam

Minha é a luz do sol, minha é a manhã
Nascida de uma luz, o paraíso viu a diversão
Louve com entusiasmo, louve cada manhã
A recriação de Deus do novo dia

A manhã se rompeu
Como a primeira manhã
O melro cantou
Como o primeiro pássaro
Louvor para o canto
Louvor para a manhã
Louvor para o nascimento recente
Do mundo


quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Confissão de fé


 "Com Cristo no barco tudo vai muito bem...e passa o temporal"
Aprendi isso na infância, por isso me molho no temporal, mas não fujo dele!


Mesmo não florescendo a figueira, 
e não havendo uvas nas videiras, 
mesmo falhando a safra de azeitonas, 
não havendo produção de alimento nas lavouras, 
nem ovelhas no curral nem bois nos estábulos, 
ainda assim eu exultarei no Senhor 
e me alegrarei no Deus da minha salvação.
O Senhor, o Soberano, é a minha força; 
ele faz os meus pés como os do cervo; 
faz-me andar em lugares altos.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Dialogando com o porteiro da Igreja Batista da Graça

Paro no portão de saída do estacionamento da IBG.

Enquanto o portão se abre eletrônica e lentamente, o porteiro se levanta, aproxima-se da porta do meu carro e diz:

- Pastor, eu tava aqui pensando em Dilma Rousseff.
- Em que? pergunto eu.
- Ela ainda não indicou nenhum ministro baiano - respondeu ele.
- Enquanto isso tem um monte de São Paulo - retruco de cá afinando ao discurso dele - e olha que sou paulista...
- Pois é, eu e toda a minha família votamos nela e a Bahia foi um dos Estados que ela teve a maior votação.
- Pois é...

O portão se abriu, o trânsito da rua clareou, acelerei pensando no PT, PMDB, PSB, PR, enfim e agora nos Pês da IBG - porteiro e pastor - todos interessados, por razões diferentes, na composição ministerial.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Mensagem à Assembleia de Fundação da Aliança Evangélica

 por Bispo Robinson Cavalcanti (*)

 
– Não Se Faz História Sem História –
 
Amados irmãos e irmãs presentes a esse histórico momento:

O renomado pensador anglicano C. S. Lewis, em seus escritos, sempre chamou a atenção para os riscos daquelas gerações que se acham “refundadoras” do mundo, ignorando e desprezando tudo o que a civilização construiu antes dela. Alguns dizem que as mesmas “querem descobrir a roda, ou a pólvora outra vez”. Desde a Reforma Radical que uma expressão do anabatismo como ideologia tem se manifestado nessa visão de uma “apostasia” da Igreja antes da sua geração, com o Espírito Santo “tirando férias” entre a morte do apóstolo João e o nascimento de Lutero, ou o surgimento de algum grupo ou movimento posterior. O “restauracionismo” sempre tem rondado – e tentado – o Cristianismo. Hoje, mais na Igreja do que no próprio século, vive-se a síndrome de uma “geração sem umbigo”, individualista, imediatista, iconoclasta, antinômica e presentista.

Já se afirmou que um povo sem passado é um povo sem futuro e que um povo sem história é um povo sem identidade. Essa manhã, gostaria de reafirmar o caráter uno, santo, católico e apostólico da Igreja de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Gostaria de reverenciar a memória dos santos e mártires de todas as épocas e lugares. Gostaria de reafirmar a “comunhão dos santos”, e, ao mesmo tempo, denunciar como pecado e tragédia esse anti-historicismo, anti-institucional, irracional, irresponsá-vel, de previsíveis trágicas consequências. A honestidade intelectual forçará a nossa consciência reconhecer que “nunca antes na Igreja Evangélica desse País” o seu povo foi tão ignorante e tão preconceituoso em relação à sua história e ao legado dos seus antepassados. Esse é um dos aspectos centrais da crise do protestantismo brasileiro, e não haverá saída sem uma mudança, em que possamos construir o presente, com alvos para o futuro, a partir do passado.

Sabemos que a Guerra dos Trinta Anos, entre Estados Protestantes e Estados Católicos, conduziu a um cansaço cultural que gerou, por um lado, a reação iluminista, o agnosticismo e o materialismo, e, por outro lado, um “congelamento” nos embates apologéticos e nos esforços missionários mútuos, com uma territorialidade confessional oficial ou oficiosamente estabelecida, e um olhar evangelístico voltado apenas para os povos ditos “pagãos”, fossem eles primitivos ou seguidores de antigas religiões não-monoteístas ou não-trinitárias. Daí o protestantismo na América Latina ter sido, desde os seus primórdios, incompreendido, não apoiado, censurado, desvalorizado, por amplos círculos internacionais, até os nossos dias. Foi nesse contexto que a hoje festejada e centenária “Conferência Missionária” de Edimburgo, de 1910, nos excluiu como terra de missão.

Somos vistos, ou tolerados, como os exóticos bem sucedidos, a exceção que deu certo.

Essa manhã, devemos homenagear os pioneiros do protestantismo de missão, tanto estrangeiros quanto nacionais, que, movidos por uma visão, uma paixão e uma doação, aportaram no Brasil na segunda metade do século XIX, pretendendo nos trazer uma fé superior, a democracia e o progresso, em clima de respeito mútuo e cooperação, enquanto procuravam impactar a Sociedade e o Estado, primeiro sob as draconianas restrições legais do Império, depois sob violentas perseguições sociais no período republicano. Aqueles pioneiros – escatologicamente pós-milenistas ou amilenistas – se tornaram abolicionistas, republicanos, defensores da separação entre Igreja e Estado, criadores de uma rede notável de educandários, que marcou vidas e forjou lideranças em todo o território nacional: congregacionais, presbiterianos, metodistas, batistas, episcopais, cristãos evangélicos. Colhemos hoje com alegria o que eles um dia semearam, parafraseando Churchill, com “sangue, suor e lágrimas”.

Nossa homenagem aos “derrotados” na Conferência de Edimburgo, que, inconformados e convictos, organizaram o Congresso de Ação Cristã na América Latina, do Panamá, em 1916, reafirmando esse continente, nominal e sincrético, como terra de missão, e que a missão deveria se fazer em unidade. Nossa homenagem, também, aos brasileiros, como Erasmo Braga, em 1920, a Comissão Brasileira de Cooperação, o Conselho Nacional de Educação Religiosa e a Federação de Igrejas Evangélicas do Brasil, embriões de um movimento pela unidade protestante em terras brasileiras.

Nossa homenagem, ainda, aos visionários, que transformaram aquelas entidades em um dos primeiros organismos nacionais aglutinadores e representativos do protestantismo em todo o mundo: a Confederação Evangélica do Brasil, criada em 1934, com seus vários departamentos, tendo à frente notáveis líderes e pensadores, que escreveram uma epopeia, até a crise que levou ao seu encerramento, no turbilhão de controvérsias ideológicas e teológicas que marcaram o período da chamada “Guerra Fria”, bem como o Golpe Militar de 1964, e o período discricionário que a seguir infelicitou a nossa nação.

Nossa emocionada homenagem aos mortos, aos torturados, aos desaparecidos, aos exilados, aos marginalizados (incluindo nossos fiéis) em um momento de penitência por uma Igreja que pecou ao se deixar instrumentalizar pelos poderes desse mundo.

Nossa homenagem a cada homem e mulher, tantas vezes anônimos, que mantiveram firmes a chama da unidade na verdade, mesmo diante das adversidades e das polarizações, com suas pressões, tentações e riscos internos e externos.

Nossa homenagem àqueles que lutaram por transformar a outra expressão do protestantismo, o de migração, também em protestantismo de missão, em acercamento às igrejas morenas.

Nossa homenagem àqueles que lutaram por retirar o pentecostalismo – ator posterior - do seu isolacionismo, em grande parte consequência da sua escatologia, e dar passos corajosos na direção dos históricos, de missão ou de migração, em uma atitude de mútuo respeito e mútua aprendizagem, inclusive sarando as feridas das controvérsias da “renovação” dos anos 1960. Nossa homenagem particular ao saudoso estadista da Assembleia de Deus Alcebíades Vasconcelos.

Estamos convencidos de que é dessa convergência em torno da ética, da sã doutrina e da missão integral da Igreja, que históricos, migratórios, pentecostais e renovados, poderão reviver e retomar a epopeia interrompida e inacabada, sempre necessária, e sempre urgente, pois sempre no coração de Deus.

Nossa homenagem aos que compareceram ao Congresso de Berlim, em 1966; à fundação da Fraternidade Teológica Latinoamericana, em Cochabamba, em 1970; ao Congresso Lausanne I, em 1974, muitos deles já integrando a Igreja Triunfante.

Lamentamos o longo hiato à causa da unidade, depois do fechamento da Confederação Evangélica. Lamentamos o longo hiato que se seguiu ao Congresso de Lausanne I, por tantos anos incompreendido, por setores polarizados de nossas igrejas. Nossa homenagem ao missionário norte-americano Lawrence Olson, da Assembleia de Deus, responsável pela primeira publicação do Pacto de Lausanne em língua portuguesa.

Sem negar a memória e o legado mais antigo dos CELAs, registramos a importância mais recente dos Congressos Latinoamericanos de Evangelização, os CLADEs, a criação da Comissão Brasileira de Evangelização (CBE) e a realização dos Congressos Brasileiros e Nordestinos de Evangelização. Passos importantes, tijolos vivos, nessa penosa tarefa de reconstrução.

Nossa homenagem aos que tentaram, e deram o melhor de si para a experiência válida que foi, nos anos 1990, a Associação Evangélica Brasileira, a AEvB, cujas principais fragilidades foram a demora para o seu início e o modelo de sua gestão, mas que não podemos nem apagar a história, nem sermos ingratos ao que de positivo se fez, destacando-se o seu “Decálogo do Voto Ético”.

Que lições podemos extrair desse rico passado?

Para mim, após mais de meio século no protestantismo brasileiro, ficaria uma querida palavra da língua portuguesa: saudade. Saudade de quando éramos um número não escandaloso de “denominações”. Saudade quando todos confessavam a sã doutrina. Saudade do sonho comum da unidade. Saudade da seriedade, da reverência, da solenidade, da disciplina (inclusive intelectual). Saudade da ética. Saudade da imagem positiva e da boa reputação. Saudade de quando o termo “evangélico” significava a mesma coisa para todo o mundo. Saudade quanto tínhamos uma representatividade e uma voz ouvida e respeitada. Com diria minha avó, entre suspiros: “bons tempos aqueles...”. E espero que não me entendam nem como um idealista ou um saudosista, mas como quem presenciou e vivenciou experiências, e para elas foi atraído.

Os tempos são outros, os desafios são velhos e são novos, a História está para ser escrita por novos atores, por uma nova geração.

Por um lado, como missionários, estamos presentes em todos os continentes, e temos uma responsabilidade de estreitar relacionamentos tanto com a América Latina, quanto com os países de expressão portuguesa. Temos quadros, recursos e não sabemos o que fazer. Vejo com satisfação a nossa integração à crescente família da Aliança Evangélica Mundial. Com o caos que caracteriza a chamada “comunidade evangélica” brasileira, que nem é comunidade e nem sempre é evangélica, temos que ser modestos em nossa capacidade inicial para aglutinar e agregar. Mas, por outro lado, não podemos nos mover pelo excesso de timidez. Juntemos os que querem se juntar, e juntemos com coragem, vendo a audácia irmanada ao bom senso como virtudes irmãs e inseparáveis.

Necessitamos vencer essa marca maléfica do neo-platonismo com seu anti-institucionalismo. Organismo e organização são duas faces da mesma moeda, dentro do mandato cultural que o Senhor nos confiou. Queremos membros de carteirinha, sem preconceitos contra as carteirinhas...

E, por favor, vençam a marca maléfica do temor de que esse novo foro vá além do intercâmbio e de ações comuns, e assuma o seu papel irrecusável de ser representativo. Não somos a única voz, mas somos uma voz, uma voz respeitável, diante de tantas falsas vozes ou do silêncio culposo da ausência de vozes. Convictos, e sem sentimentos de inferioridade ou de vergonha, de portar o termo “evangélico”, em sua reafirmação da autoridade das Sagradas Escrituras, sua centralidade na cruz de Cristo, na experiência de conversão e no mandato missionário.

Nós, da “velha guarda”, não ficamos apenas nas homenagens ao passado, na saudade, no chamamento às lições vividas, no apontar para um rico legado, para a lembrança de nomes e de feitos – por mais importantes que sejam – mas gostaríamos de viver esse momento a partir de um outro sentimento: o sentimento da esperança. Esperança naquele que faz nova todas as coisas. Esperança na Providência. Esperança no Senhorio de Cristo sobre a História e sobre a Igreja. Esperança na resposta dos que são chamados a tornar o Evangelho relevante para sua geração, promovendo a unidade e a inculturação da Igreja, uma Igreja encarnada e verde-e-amarela, não dividida, não irrelevante, não mimética de modismos forâneos

E como as gerações têm respondido ao chamado de Deus e da História?

Algumas se notabilizaram pela obediência e pela relevância; outras pela desobediência e trágico legado, enquanto algumas, e com frequência, desobedeceram pela omissão.

Que a memória dos nossos maiores antepassados seja dignificada!

Que o Senhor confirme a obra de vossas mãos. E que a bênção do Deus de Abraão de Isaque e de Jacó; o Deus de Kalley, Simonton, Kinsolving e Berg; o Deus de Eduardo Carlos Pereira, de Munguba Sobrinho, de Jerônimo Gueiros, de Aurélio Viana e Lisâneas Maciel, vos abençoe e vos guarde nesse dia e para sempre. Amém.

Oremos:

“Recebe, ó Senhor, nós te rogamos, as orações da tua Igreja, hoje quando nos lembramos dos teus servos e servas, e de sua luta em nosso País em favor do Cristianismo Reformado. Concede a todos nós a coragem desses irmãos do passado, para que lutemos com fé e coragem pela fé uma vez dada aos Santos. Mediante Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina contigo e o Espírito Santo, pelos séculos dos séculos. Amém”.



* Robinson Cavalcanti, bispo da Diocese do Recife – Comunhão Anglicana, cientista político, escritor e bispo anglicano, ex-assessor da Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB), foi membro fundador e integrante da Comissão Executiva da Fraternidade Teológica Latinoamericana (FTL), da Comissão de Convocação e da Comissão de Continuação (LCWE) do Congresso de Lausanne, da Comissão Teológica da Aliança Evangélica Mundial (WEF) e da Comissão Executiva da Fraternidade Evangélica na Comunhão Anglicana (EFAC). Palavra à ACeB na manhã do dia 30/11/2010.

sábado, 27 de novembro de 2010

A alegria do ministério da Igreja


Para não entrar em controvérsias, diferencio o significado das palavras felicidade e alegria neste contexto. Defino felicidade como um sentimento de bem estar que experimentamos quando determinado fato ou situação nos é favorável, nos beneficia, e alegria como um estado interior de graça que nos motiva a manter o ânimo e o desejo de continuar lutando e vivendo inclusive quando fatos ou situações nos são desfavoráveis.

Assim, declaro que o ministério da igreja não vive só de felicidade, mas mantém-se alegre. Não vive só de felicidade, pois nem tudo que acontece em nossa caminhada, seja individual ou coletiva, nos favorece. Pior, muitas situações, além de não nos favorecerem, servem para bloquear nosso desenvolvimento e até nos atrofiam como pessoas.

Afirmo, entretanto, que a igreja mantém-se alegre porque sua natureza é espiritual, isto é, alimenta-se do Espírito de Deus que, dentre outros, produz em nós a alegria.

A caminhada em comunhão com Deus faz com que, mesmo diante de adversidades que afetam nossa felicidade, nossos corações continuem alimentados pela esperança, pela confiança e, sobretudo, pelo amor. Isso faz com que nossa alegria permaneça, mesmo quando a felicidade desaparece.

Alegria não é sinônimo de riso permanente, mas de ânimo presente em níveis que nos impulsionam a continuar lutando contra os obstáculos da vida. Ainda que nosso desejo constante seja pela felicidade ininterrupta, é na alegria que devemos concentrar nosso foco.

Tristeza não combina com felicidade, mas dela pode brotar alegria, como vemos nas palavras de Jesus: “Digo-lhes que ... vocês se entristecerão, mas a tristeza de vocês se transformará em alegria.” (Jo. 16.20). Em nossa existência, não foram poucos os momentos de infelicidade. A alegria, entretanto, nunca esmoreceu, por isso comemoramos.

Sabedores de onde jorra a alegria, podemos dizer, sem qualquer medo de errar, que o segredo para uma caminhada de vida vitoriosa é continuar bebendo na inesgotável fonte de alegria, de entusiasmo, de força para viver que é Deus, em sua tríplice manifestação: criador – provedor - acima de nós; Senhor – Jesus – entre nós e consolador – Espírito Santo - dentro de nós.

Quem se mantém em comunhão espiritual com Ele, comprometido com os valores do seu reino, há de ser, sempre alegre, mesmo nos momentos de infelicidade, tristeza ou choro. Sua confiança está na palavra que diz: “Pode a tristeza durar todo o anoitecer, mas a alegria, ela vem ao amanhecer” (Salmos 30.5).

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Lixão

 Poucos textos tem impactado tanto minha vida pessoal e ministerial como "Lixão". 
Já perdi as contas de quantas vezes o lí desde que um amigo o recomendou no site de Cristianity Today International, há alguns anos.

Ele me incomodou tanto que pedi à minha filha que fizesse uma tradução e pedimos autorização para publicá-lo.
Vez por outro volto a ele, leio, leio, leio e me questiono, me questiono, me questiono.
Nessa semana resolvi tirá-lo dos arquivos e publicá-lo em meu blog.

Ele coloca em cheque conceitos missiológicos, atuação social, relacionamentos interpessoais, inclusive conjugais, motivação e visão ministerial, enfim...

Confira!

.........
"Num lugar onde até as pessoas são consideradas lixo, ninguém ouviria o pastor educado e bem-sucedido. Até que ele se tornou um deles.

*Uma entrevista com Saul Cruz.

Para alguém de fora, o Ministerio Armonía aparenta um exemplo extraordinário de liderança regional em algumas das comunidades mais pobres do México – uma rede de escolas, clínicas médicas e centros comunitários liderados pelos próprios membros das comunidades. E o é. Mas Armonía (Harmonia) é também uma missão trans-cultural – não apenas porque voluntários de longo ou curto prazo vindos de igrejas dos EUA e Europa são bem-vindos, mas  porque seus fundadores tiveram que aprender a superar barreiras culturais e de classes sociais intimidantes. Saul e Pilar Cruz fundaram Armonía em 1987 no momento em que Saul, que possui um Ph.D. em psicologia, estava atingindo a proeminência como líder nacional da Visão Mundial do México. Como ele descreve na entrevista com o editor chefe do Projeto de Visão Cristã (Christian Vision Project) Andy Crouch, a história do Armonía é uma de desaprendizado de muitos de seus pressupostos sobre sucesso e importância.

É uma história que carrega muitas lições para qualquer um que superaria barreiras de educação e privilégio – qualquer um que esteja fazendo a pergunta do Projeto de Visão Cristã para 2007: O que nós devemos aprender, e desaprender, para sermos agentes da missão de Deus no mundo?

Quando você começou a trabalhar com a Visão Mundial na Cidade do México há vinte anos, quão engajadas eram as igrejas protestantes com a necessidades dos pobres?

Em 1985 haviam cerca de mil igrejas protestantes – para uma cidade em que era estimada uma população de aproximadamente 8 milhões de pessoas naquele tempo – com uma média de 60 membros cada.

Nós observamos um mapa socio-econômico da Cidade do México. Naquele tempo, 8% dos residentes da Cidade do México eram ricos, alguns, aliás, dentre os mais ricos do mundo. Por conseguinte, 17% eram classe média; 75% eram pobres, a maioria sobrevivendo com menos de um dólar por dia.

Então, no mapa que separava as áreas por renda, nós posicionamos as igrejas. Das 1000 igrejas, 890 estavam localizadas em vizinhanças de classe média. Algumas estavam dentre os ricos – a maioria servindo não aos Mexicanos, mas a estrangeiros. Aproximadamente todo o resto estava nos limites entre as vizinhanças pobres e de classe média. Quase nenhuma estava localizada dentro de vizinhanças pobres.

Assim, você tinha vastas áreas da Cidade do México sem nenhuma presença de evangélicos protestantes.

Isso deve ter sido uma decepção.
Mas eu descobri uma igreja grande em um dos piores bairros – um bairro sem água, sem ruas pavimentadas, com pouca eletricidade. “É isso,” eu pensei, o tipo de igreja que mobiliza seus recursos para servir num lugar onde esses recursos são realmente necessários. Então eu visitei o pastor.

Caminhando dentro do complexo, nós encontramos o paraíso: grama verde, água irrigando jardins e carros elegantes. O pastor me recebeu com grande alegria, me levou a seu gabinete, e me ofereceu café. Ele tinha um gabinete muito bonito!

Eu perguntei como sua igreja tinha vindo parar aqui. Eu esperava que ele dissesse: “Eu vi a necessidade. Eu vi que poderiamos causar efeito.”

Ele disse: “Você sabe, a terra é barata aqui. Se você proteger os carros, você pode ter um ótimo estacionamento!”

Que perspectiva particular.

Agora, eu devo dizer que se você for aos Estados Unidos, a imagem não é tão diferente. Muitas igrejas são pequenas ilhas que não se envolvem realmente com os vizinhos. Elas não percebem que podem ter um efeito de transformação da sociedade.

O que levou você particularmente a este tipo de ministério?

Minha esposa sempre foi minha parceira, minha intercessora chefe. Quando nos casamos, nós fizemos o compromisso de trabalhar dentre os pobres. Quando eu estava fazendo bastante dinheiro e minha carreira como psicólogo estava decolando, nós deixamos tudo para trás para iniciar uma escola para crianças deficientes numa comunidade pobre. Porém, quanto mais eu me envolvia no meu trabalho com a Visão Mundial alguns anos depois, mais distante ela se tornava.

A verdade é que enquanto havia bastante amor em nosso casamento, nossas posturas em relação aos necessitados se tornava bastante diferente. Enquanto eu trabalhava em projetos nacionais grandiosos, ela havia se envolvido com pessoas com paralisia cerebral. Ela estava sempre me perguntando, “Quando você se juntará a nós?” Mas eu estava muito ocupado para trabalhar com ela. Afinal, eu estava mobilizando igrejas para trabalhar dentre os pobres!

Um dia ela me parou e disse, “Escuta, você não é o homem com quem eu casei. E eu não sei porque você mudou tanto. Mas uma das razões para casar com você foi por causa da paixão que você tinha pelos pobres. E agora você tem uma paixão por se tornar importante.”

“Bem, escute,” eu disse, “se eu posso influenciar as igrejas do México, se eu posso mobilizá-las...”

Ela disse, “Influenciar as igrejas do México? Quem você pensa que é? Lutero ou Calvino?

Bem, isso iniciou uma enorme conversa.

Minha esposa e eu já tivemos dessas “conversas”.

Nós tiramos uma pequena folga e viajamos para discutir isso. Nós brigamos e brigamos. Até que um dia ela disse: “Eu não quero ser grossa, mas eu preciso te perguntar. Você sabe realmente como trabalhar com os pobres? Ou você apenas fala sobre os pobres?”

Eu não tinha a resposta.
Eu podia falar dos pobres. Eu podia te mostrar livros. Eu podia convocar o resto do mundo para trabalhar com os pobres. Mas eu, particularmente, não estava trabalhando com os pobres.

Ela disse: “Nós precisamos aprender. E se nós não aprendermos, como chamaremos os outros para o fazer?”

Aquilo encerrou a discussão. Ela venceu. Porque ela estava certa. Nós concordamos em viver numa favela da cidade do México e nos concentrar no trabalho com os pobres.

Agora, para minha esposa, trabalhar com os pobres não era problema. Ela não queria ser percebida como uma figura de poder, alguém com acesso a dinheiro ou alguém que tinha um projeto de mudança, mas apenas como uma vizinha. Mas para mim, isso significava despir-me do meu senso de poder, do meu lugar de segurança. Eu iniciei uma pequena clínica – um lugar para servir o povo e caminhar com meus filhos para escola e conversar com os vizinhos. E, oh!, foi terrível, porque eu era um vizinho – nada mais. Apenas um vizinho.

A abordagem da minha esposa, contudo, foi impressionantemente eficaz.  Ela se ligou a prostitutas que queriam deixar a profissão, com mães que viam seus filhos morrerem por causa do vício em drogas ou pelo tráfico, que queriam mudar seu ambiente. Mas eu não estava satisfeito com a abordagem da minha esposa. Eu me senti sem poder.

Quando uma igreja próxima nos ofereceu seu prédio para usarmos como centro comunitário, eu aceitei.

Pareceu uma boa oportunidade.

Exatamente. Parecia perfeito. Nós criamos um centro comunitário, e nós começamos a trazer pessoas para a igreja ali. Aos domingos nós acordávamos cedo para sair pelo bairro dizendo: “Acordem. Vamos para a igreja. Vamos ler a bíblia e cantar juntos. Juntem-se a nós.” Estava virando uma verdadeira passeata a cada domingo. Pessoas cantando nas ruas, batendo nas portas, oferecendo café para os vizinhos, alguns dos quais vinham para a igreja de pijama!

Mas eu não percebi que a igreja estava levando aquilo bastante insatisfatoriamente. A filha de um dos líderes se apaixonou por um dos novos Cristãos, um antigo líder de uma gangue de rua. O pai me encurralou depois de um culto e disse, “Se minha filha se casar com este homem, eu vou matá-lo.”

Então, um domingo, eu cometi um grande erro. Enquanto estava pregando, uma das mulheres da região com quem tínhamos trabalhado veio sangrando, calçando apenas um sapato. Seu vestido havia sido rasgado, e ela havia sido espancada gravemente – claramente por um cafetão. Nosso filho pequeno começou a gritar quando viu o sangue e agarrou a sua mãe, então minha esposa não podia ir ajudá-la.

Ninguém na sala toda se moveu em direção a ela. Então eu parei de pregar, pedi a um dos diáconos para continuar o culto e fui até ela, tomei-a pela mão e pedi a minha esposa para me seguir até o gabinete. Quando nós saímos, tendo atendido às suas necessidades, o culto havia terminado, mas um grupo de líderes da igreja estava esperando por mim.

Nunca abandone o púlpito por uma mulher como aquela,” eles disseram. “Isso é completamente fora de ordem!”

Eu deveria saber que o relacionamento fora quebrado e sem conserto. Mas por algumas semanas nós continuamos trazendo pessoas à igreja conosco. Nós estávamos frequentemente atrasados, o que não é raro no México. Mas uma semana nós viemos cantando para a porta do prédio da igreja. Estava trancado. Isto era estranho. Ninguém estava ali.

Eu voltei para casa e peguei minhas chaves. Abri a porta, entrei – e estava completamente vazio. Nenhuma cadeira. Nem um banco. Absolutamente vazio.

Eles tinham tirado todos os móveis?

Todos. E no chão havia um bilhete: “Saul, nós entendemos que Deus está te guiando para um caminho diferente. E nós decidimos nos mudar. Nós compramos um pedaço de terra e construímos nossa própria igreja, e você está sozinho. Se você puder pagar as contas, você poderá continuar. Adeus.”

As pessoas conosco estavam chorando, praguejando, cuspindo – elas se sentiam muito rejeitadas pela igreja. Nós prosseguimos, mas na manhã seguinte, o dono do prédio veio. “Você é o Sr. Cruz? Eu preciso que você deixe as dependências.”

Eu disse que estava aberto para assinar um contrato. Mas ele disse, “Não. As pessoas que saíram disseram que você anda com más companhias, e que eu deveria ter cuidado com você.

“Sim, eu estou com más companhias,” eu disse. “Isso é bem verdade. Eu estou com pecadores o tempo todo!”

Aquilo nos forçou a ir para um pedaço de terra que havia sido doado no meio de uma das piores favelas, um lixão. Nas áreas pobres, pessoas viviam em meio ao esgoto. Eles fizeram ilhas no esgoto com sujeira e areia,  e as conectaram com pequenas pontes, e havia uma grande rede de ilhas feitas por homens sobre o esgoto não tratado da cidade. Nós mudamos para um bairro um pouco mais seguro e trabalhamos por três anos para limpar aquela propriedade e iniciar um ministério ali. Mas era tão longe de onde estávamos antes que praticamente começamos do zero.

Para minha esposa isso não era problema. Ela ficaria feliz de estar trabalhando no lixão. Mas para mim, eu estava me desfazendo das minhas fontes de poder mais e mais.

Parece que seu senso de importância se esticou ao ponto de partir.

Exatamente. No final daqueles anos, eu disse a minha esposa, “ Eu preciso parar. Eu quero voltar a uma igreja normal. Eu quero pregar novamente. Aqui eu estou sendo muito ineficiente. Se você fala, as mulheres te escutam. Quando você lê a bíblia, as mulheres te escutam. Elas te dão suas crianças. Você as leva para hospitais. Até mesmo seus maridos vêm e te escutam. Mas quando eu falo, eles bocejam ou saem. Eu não sou aceito da forma que você é. Você é extremamente eficiente. Eu acho que devo ir a outro lugar. Eu vou te sustentar. Mas preciso de um trabalho melhor.

Em minha cabeça, havia me tornando um ninguém. Eu tinha me formado na universidade, ganhado prêmios acadêmicos e tinha uma carreirra significativa. Mas naquela vizinhança eu não era ninguém – e era culpa minha. Eu não havia aprendido a falar como eles. Eu queria que eles me entendessem, e que escutassem minha forma de falar. Lá no fundo eu era arrogante e eles podiam perceber.

Então eu disse para minha esposa, “Veja, você é que é o pastor aqui. Eu te sustentarei e serei o marido da pastora.” Nós tivemos uma verdadeira guerra aquela noite, um sábado a noite. E nossos pobres filhos tiveram que escutar tudo.

“Amanhã,” eu disse, “eu vou começar a frequentar outra igreja.”

Você não é o primeiro pastor a ter essa idéia. (Risos)

No domingo pela manhã, alguém bateu à nossa porta. Era o vizinho do lado, um homem da classe média. Ele disse, “Você é um conselheiro?”

“Sim,” eu disse.

“Por favor, me ajude. Eu estou perdendo meu casamento.”

Eu quase disse pra ele, “Eu também estou perdendo o meu – vamos chorar juntos!” Mas, ao invés disso, minha arrogância ressurgiu de mansinho. Ali estava algo em que eu era um especialista! Então, eu o convidei para entrar. Nós conversamos por duas horas. Eu estava na minha área. Me senti útil. Sua esposa se juntou a nós e no fim da conversa eles resolveram buscar um caminho para salvar seu casamento. Eles estavam aliviados e agradecidos.

Quando estavam saindo eles perguntaram, “Vocês vão a alguma igreja? Porque nós vemos vocês saindo todo domingo vestidos para ir à igreja.”

E minha esposa disse, “Sim, nós vamos, e ele é o pregador.”

E eu disse, “Não, não. Nós temos um centro comunitário numa das favelas da cidade. É lamacento e cheira mal porque é próximo ao lixão. E na verdade, o que eu tenho é uma pequeno grupo de pessoas que vêm e escutam quando minha esposa fala e não escutam quando eu falo.”

O casal disse: “Nós queremos ir com vocês.”

“Tem certeza?” Eu perguntei. Mas eles realmente queriam ir. Então eles foram conosco aquela manhã.

Na igreja, quando estávamos no meio da oração, algumas pessoas vieram correndo para o centro comunitário dizendo “Há uma emergência naquela esquina ali em baixo!”

Nós corremos para a esquina e descobrimos que um buraco enorme, talvez com dois metros e meio de profundidade, havia sido aberto sob a rua. Um novo sistema de esgoto havia sido instalado dois anos atrás, mas não tinha sido vedado corretamente. O esgoto que vinha morro abaixo levava a areia sob a rua. A rua estava à beira de um colapso e havia o perigo de que dúzias de casas próximas serem varridas também.

Alguém chamou os serviços da cidade, mas eles disseram que levariam dias até que viessem. Era óbvio que a rua iria desmoronar antes disso. Não tínhamos idéia do que fazer.

Então senti alguém tocar meu ombro e dizer: “Posso ajudar?”

Era o vizinho que tinha vindo comigo.

“Não, não,” eu disse. “Por favor, você precisa sair daqui. Você é nosso convidado e essa situação é perigosa.”

Ele disse: “Não, eu sei exatamente o que fazer. Eu sou engenheiro de minas.”

Então ele organizou os vizinhos para fazerem sacos de areia e criou uma coluna embaixo dos canos de esgoto usando os sacos e madeira que tiramos do nosso próprio prédio. Nós mobilizamos toda a vizinhança, paramos o trânsito e pusemos todos os homens para trabalhar. Ele conseguiu colocar tudo de volta ao seu lugar.

Que presente extraordinário ele ter vindo com você aquele dia!
Claro que isso também foi uma bagunça horrível. Nós ficamos completamente cobertos de sujeira. Começamos a trabalhar pelo meio-dia e terminamos às três da manhã do dia seguinte. Nós saímos da cratera e voltamos para nosso centro comunitário, provavelmente duzentos homens, e as mulheres haviam esquentado água para nos lavarmos. Elas pegaram nossas roupas e as lavaram da melhor forma possível. Estava frio e garoando, e nós estávamos tremendo, mas ao menos não estávamos mais fedendo como antes.

Eu comecei a chorar. Eu disse, “Me desculpem, mas eu preciso orar. Preciso agradecer a Deus porque ele acabou de nos salvar. Ele salvou você e me salvou. Ele enviou este homem, meu vizinho, para nos ajudar e nos deu uns aos outros para fazer o trabalho. Podemos orar?”

Eles disseram que sim.

Então extendi as mãos e eles a seguraram. Nós nos ajoelhamos e oramos. Quando nos levantamos, eu era seu pastor. Eu puder ver isso. Daquele dia em diante, eles me respeitavam. Daquele dia em diante eu me tornei seu pastor.

Você percebe, ser um pastor é aprender a linguagem do amor. As pessoas precisam ver que você é real – que você realmente se importa com elas, que você está até mesmo disposto a colocar sua vida em risco por elas. De repente, meu papel naquele bairro tinha mudado completamente.

Essa história tem implicações sobre a maneira que as pessoas chegam a uma comunidade carente?

É muito fácil para missionários cometerem os erros que eu cometi. Nós construímos nossas igrejas através do poder. Mas nós nunca ganhamos o respeito das pessoas ao nosso redor. E com o poder vem a fantasia de que eu sei tudo, que eu sou a pessoa com a competência para “consertar” a sociedade em que estou.

Porém, há na verdade uma grande resistência a pessoas que vem a uma comunidade achando que sabem do que as pessoas de lá precisam. Nós percebemos que, quando vamos a uma nova comunidade, temos que ter a postura de que não sabemos nada. Nós sabemos quem somos, dizemos, mas não sabemos como trabalhar aqui. Assim estamos abertos. Nos ensine, por favor.

Quando recebemos grupos da América do Norte ou Europa para nos visitar, eu nunca tenho um plano para o grupo ou para a comunidade. Ao invés disso, quando o grupo chega, nós perguntamos à comunidade, “O que nós podemos fazer juntos? Vocês têm vontade de fazer algo juntos?” E a resposta pode ser: nós apenas queremos jogar futebol com vocês ou gostaríamos que vocês ensinassem algo sobre computadores. Ou pode ser: nós somos bons dançarinos, gostariam de aprender a dançar conosco?

Os visitantes dizem, “O quê? Eu vim para salvar o mundo. Meu pastor disse que nós iríamos para o México para mudar o mundo para Cristo. E você me pede para aprender a dançar suas danças folclóricas?”

Mas você sabe, eles aprendem muito mais através desse processo do que apenas crendo nas fantasias de que uma chamada missão de uma ou duas semanas vai salvar o mundo.

O que as igrejas Americanas poderiam aprender que nos levaria a ser melhores parceiros em sua missão?

Eu acho que a igreja Americana, a qual eu amo e sou muito grato, frequentemente não está ciente da sua linguagem. Você escuta a linguagem dos Americanos de “mudar o mundo” o tempo todo. Bem, isso traz enormes implicações para nós restantes! Por que esses Americanos querem mudar o mundo? Em que mundo eles irão mudar? Eles sabem mais do que nós? É isso que eles querem dizer?

Se você vier a mim, mesmo com a melhor das intenções, e disser, “Saul, eu vim aqui para mudar o seu mundo,” eu vou me sentir insultado. Porque você não sabe o quanto eu amo minha própria cultura. Eu nasci aqui por causa de uma decisão de Deus, não minha. Eu cresci com nossas músicas, nossas cores, nossos rítmos.

Quando as pessoas vêm e dizem, “Oh, você está atrasado porque este é o México,” Eu sempre penso, “Bem, e daí? Os mexicanos são despreocupados e nós amamos isso!”

O mesmo acontece quando eu, como uma pessoa educada, vou até as favelas. Quando eu falo com eles, eu tenho que fazer isso na área, nas ruas, em suas casas, em qualquer lugar. E eu preciso ter certeza de que estamos criando uma linguagem de entendimento mútuo. Nós precisamos concordar em quais coisas precisamos concentrar nossa atenção para mudar, e em quais coisas nós devemos apenas dizer, “Obrigada, Deus. O que nos deste é lindo assim como é.”

Então, supondo que concordamos que um dos problemas a ser tratado seja o fato das crianças estarem reprovando nas aulas de Inglês. Agora seria fácil dizer, “Posso recrutar alguém da Inglaterra ou Estados Unidos para vir ensinar?” Mas primeiro deveria perguntar, “Há algum recurso na comunidade?”

Alguém pode dizer, “Minha filha estuda Inglês e ela está indo bem. Ela poderia ensinar as crianças.” Mas talvez ela precise trabalhar para se sustentar. Poderia a comunidade se unir para pagá-la? Este tipo de processo é muito diferente de vir para “mudar o mundo”. Nós não queremos que nossos vizinhos nos vejam como salvadores – eles devem nos ver como seus parceiros, seus facilitaderes, seus amigos.

Nós oramos, “Seja feita sua vontade na terra como no céu.”  Isso não implica em mudar o mundo?

Eu diferencio “mudança” de “transformação”. Mudança pode vir como um resultado de poder. Se você tem o poder – o poder de recursos superiores, tecnologia, conhecimento, contatos – você pode trazer um certo tipo de mudança. Mas se você usar o poder para colocar o que você tem goela a baixo nas pessoas, você nunca, nunca as verá  transformando-se. Ao contrário, você as vê se adaptando. Mas há algo sobre “transformação” que implica num processo que não é feito a alguém, mas num processo em que ambos começam a criar uma nova linguagem em comum, um novo mundo em comum, um novo entendimento em comum.

Então a transformação que precisa acontecer deve ir nas duas direções.

Exatamente. Não é “Vamos transformar esses pobres coitados” mas “Vamos ver como eles e nós seremos transformados!”

De forma alguma estou sugerindo que Americanos não são necessários no México. Nós precisamos mais desse relacionamento de transformação mútua. Mexicanos se sentem negligenciados, às vezes tão desprezados pelos seus vizinhos Americanos.

Ver os Americanos cavando ao seu lado, visitando suas casas, trazendo presentes de Natal, sentando-se com eles e lhes dando atenção, perguntando sobre seus filhos – todo ano lembrando de seus nomes – faz eles acreditarem que Deus tem uma comunidade de crentes que realmente se importam.

Essa é a forte linguagem do amor."

* Copyright © 2007 by the author or Christianity Today International/Leadership Journal.
Fall 2007, Vol. XXVIII, No. 4, Page 52n